A Covid-19 ameaça a saúde mental de milhões de pessoas no mundo. O isolamento social, as mortes de amigos e familiares, a crise econômica e o desemprego aumentam o risco de depressão, ansiedade e outras doenças.

Antes da crise, 14% da carga global de doenças era atribuída a questões de saúde mental. Segundo especialistas, a tendência é que isso aumente com a pandemia.

A despeito de sua frequência e gravidade, as doenças mentais são ainda muito pouco visibilizadas. O senhor. poderia explicar quais fatores afetam a saúde mental?

A saúde mental pode ser influenciada por fatores genéticos e biológicos, mas também por fatores socioeconômicos e sociodemográficos. Para dar alguns exemplos de demografia; as doenças e o nível de saúde mental dependem do estágio vital. Na primeira infância há mais risco de autismo, na adolescência de depressão e ansiedade, e na velhice de demência.

Em todas as etapas do ciclo de vida os efeitos econômicos e sociais pesam. Tanto a pobreza absoluta como a relativa estão associadas a uma maior prevalência de transtornos mentais, especialmente ansiedade, depressão e abuso de substâncias.

A pobreza afeta direta e indiretamente a saúde mental, piorando a nutrição, o status e a educação e aumentando a violência. Além disso, as iniquidades predizem a extensão dos problemas mentais na comunidade.

Algo que parece bastante paradoxal é o quanto a saúde mental ruim prevalece também nas sociedades desenvolvidas. Por que você acha que isso acontece? 

Tenho dito com muita frequência que, quando se trata de saúde mental, todos os países são países em desenvolvimento. O sistema de saúde que muitos países de alta renda têm não é adequado para o tipo de assistência que as pessoas precisam. Especialmente no que diz respeito à parte de promoção e prevenção, que está quase totalmente ausente. Mesmo no tratamento há muitas dificuldades. Mesmo em países de alta renda, 60% das pessoas que sofrem de depressão não são identificadas e tratadas. E a porcentagem em muitos dos países de baixa e média renda essa taxa é de quase 90%.

Você está preocupado com o impacto que a crise da Covid-19 pode ter na saúde mental global?

Muito. Não só estamos enfrentando mais fatores socioeconômicos que deveriam dar origem a mais problemas de saúde mental: desemprego, diminuição de renda, maior isolamento e maior carga com cuidado de crianças e idosas, trabalho remoto. Também estamos enfrentando a diminuição do acesso aos cuidados de saúde mental porque você não pode ir ao hospital e não pode comprar drogas.

Depois da primeira onda viral, eu temo uma segunda onda na saúde mental. Este não será um efeito de curto prazo, mesmo que a Covid-19 se resolva amanhã e ninguém mais seja infectado, o impacto socioeconômico disso continuará pelo menos por muitos anos. Isto dará origem ao aumento das disparidades na sociedade, o que terá um impacto sobre a saúde mental.

Precisamos de um novo enfoque para a saúde mental?

Primeiro, precisamos reconhecer que a saúde mental é uma parte da saúde. Segundo, nós devemos lembrar que a definição de saúde é sobre bem-estar físico, mental e até mesmo social. A maioria dos países tem um Ministério da Saúde que na verdade é um ministério da doença. A maior parte do tempo e recursos são destinados a tratar doenças. Ora, ainda que a integralidade de uma população não esteja doente, é necessário cuidar da saúde de todos. Terceiro, a saúde mental tem que ser vista como uma dimensão contínua, em vez binária, e mutante no tempo. Todos estamos sujeitos a  ter problemas mentais em algum momento da vida e é possível intervir em distintas etapas, não apenas no pico do sintoma.

Há mais de uma década, você editou uma série de artigos no Lancet e declarou com o título que não havia “nenhuma saúde sem saúde mental”. Naquela época já havia um consenso sobre como melhorar a saúde mental. Mas porque tem se avançado tão lentamente?

Existem vários fatores. O primeiro é preconceito da sociedade e dos formuladores de políticas. Quando falamos com os formuladores de políticas, eles enfatizam a importância da saúde mental. Mas quando se trata de decidir sobre o orçamento e fazer planos, é uma das menores prioridades entre todas as questões.

A segunda razão é que carecemos de recursos humanos suficientes para proporcionar saúde mental. Na verdade, os desenvolvimentos recentes no Brasil, até onde eu sei, estão indo muito em direção ao desenvolvimento de habilidades profissionais, mas mesmo assim há uma escassez de profissionais de saúde que cuidam da saúde mental.

Finalmente, as alocações financeiras têm sido muito pobres. O mundo gasta muito pouco em saúde mental, em países de alta renda, a porcentagem está entre 4% e 5% do orçamento da saúde. Nos países de baixa e média renda, é cerca de 1-2% do orçamento.

Como podemos mudar essa cultura onde a saúde mental é algo que não se discute publicamente ou que preferimos esconder?

Antes da Covid-19, o mundo acreditava que havia algumas pessoas que tinham distúrbios mentais, e todas as outras estavam bem. Hoje, o estresse incomum que muitas pessoas estão enfrentando está diminuindo o estigma. Essa é a resposta rápida, mas a resposta mais longa é que precisamos reconhecer não apenas a parte da doença em uma pessoa, mas também a parte normal de uma pessoa, para que vejamos as pessoas com experiência vivida de doença mental como pessoas em primeiro lugar e a doença em segundo.

O estigma não se reduz com a publicação de um artigo de jornal, ele se reduz vivendo com pessoas que estão enfrentando problemas de saúde mental e falando sobre isso.

Há mais de quatro décadas, a declaração de Alma Ata, em 1978, pediu a integração da saúde mental na saúde primária. O que precisa mudar para que essa integração seja plenamente alcançada?

A orientação é muito clara: todos os profissionais de saúde precisam ter um conhecimento básico de saúde mental. Um sistema ideal de saúde mental seria organizado com um primeiro nível de atenção, com cuidados informais e cuidados primários e em um segundo nível com cuidados especializados.

Este sistema seria muito útil para diminuir até mesmo o estigma, porque se você não tiver que ir a um psiquiatra, você se sentirá muito melhor. Infelizmente, a capacidade do sistema é muito pequena. Além disso, a maioria dos sistemas de saúde não tem uma métrica de avaliação para o tratamento de problemas de saúde mental.

Qual você acha que é o potencial da tecnologia, inovação, dados, para melhorar a saúde mental? Está limitada pelos riscos de privacidade?

A tecnologia tem estado pronta para a assistência à saúde mental por muito tempo, mas havia muitas barreiras para implementá-la. De repente a pandemia abriu a porta para isso. A tecnologia pode ajudar de várias maneiras. Uma delas é treinando pessoas e construindo suas habilidades. Também pode ajudar as pessoas que acessam a saúde mental remotamente.

Sobre privacidade, acredito que ela é importante para todos nós, não apenas na saúde mental. Você confia nos sites para colocar o número do seu cartão de crédito e em sites para fazer amigos. A saúde mental não é algo muito diferente de qualquer outra área sensível. A privacidade pode ser uma barreira para a tecnologia, mas às vezes também pode ser um facilitador.

Muitas pessoas, especialmente os jovens, têm uma grande relutância em começar a falar com a pessoa, mas na verdade eles estão muito felizes em falar com uma máquina.

Se você tivesse que dar uma recomendação a um político que lesse esta entrevista, por onde ele teria que começar?

Penso que o contexto importa, mas existem algumas recomendações gerais que são aplicáveis para o mundo inteiro. Minha mensagem para um tomador de decisão, seja ele um administrador ou um político, é que a saúde mental é importante demais para continuar sendo ignorada. Devemos investir mais nela. Não apenas para a saúde do povo, mas também para o desenvolvimento e prosperidade do país.

Minha mensagem para os prestadores de serviços de saúde – independentemente da função que exercem dentro do sistema – é que adotem uma abordagem integrada e não ignorem a saúde mental,. Minha mensagem para a população em geral é que a saúde mental é importante demais para que você a ignore ou evite procurar ajuda.

Shekhar Saxena foi editor de séries sobre o tema para a prestigiosa revista científica The Lancet em 2007, 2011 e 2018. Atualmente é professor na Universidade de Harvard