Por mais de 15 anos, a ativista e cinegrafista iraniana Mahnaz Alizadeh militou em favor dos direitos da mulher. Nesse período, esteve presa, sofreu ameaças e, recentemente, viu a sua mentora, a advogada Nasrin Sotoudeh, ser condenada a 38 anos e 148 chicotadas. Traumatizada, decidiu emigrar para o Canadá, mas acabou em uma cela superlotada e controlada pela facção criminosa PCC, em Rio Branco, no Acre.

O futuro de Alizadeh, 35, tem mobilizado o mundo do cinema. O diretor norte-americano Jeff Kaufmann, que acaba de lançar um elogiado documentário sobre Sotoudeh, revelou que Alizadeh foi uma dos cinegrafistas que se arriscaram a filmar a advogada sem autorização do governo. Ele a incluiu nos créditos "para que a Justiça brasileira entenda que ela pode ser presa, torturada (e possivelmente morta) caso seja deportada ao país de origem".

Ex-membro do júri do Festival de Cannes, a produtora iraniana Katayoon Shahabi é uma das testemunhas de defesa de Alizadeh no processo na 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Acre. Disse que as duas atuaram juntas em documentários sobre direitos humanos. Outros dois diretores iranianos enviaram cartas de apoio à cinegrafista, mas seus nomes não podem ser revelados por causa da  perseguição política no Irã.

Em 29 de agosto, Alizadeh e outros quatro iranianos foram presos em flagrante em Assis Brasil (AC), na fronteira com o Peru, ao tentarem entrar no país com passaportes falsos. Uma investigação da PF, baseada principalmente no conteúdo dos celulares apreendidos, apontou a cinegrafista e o iraniano-canadense Reza Sahami como membros de uma quadrilha internacional de tráfico de pessoas.

Sem falar português e com um inglês precário, Alizadeh passou cerca de 50 dias presa em Assis Brasil e depois em Rio Branco. Dividiu um colchão em uma cela quente e superlotada, sofreu com a água racionada e aprendeu a conviver com as disputas entre o PCC e o Comando Vermelho.

Para a cinegrafista, foi o pior momento desde que decidiu emigrar, em 2018, uma jornada que incluiu meses trancafiada em quartos no Equador e no Peru, durante a pandemia.

"Sentia que estava no fim do mundo, sem ninguém saber quem eu era", conta Alizadeh à reportagem, em conversa em inglês mediada por uma amiga iraniana, que viajou a Rio Branco para ajudá-la. Há algumas semanas, as duas moram em uma casa enquanto aguardam o desfecho do processo.

A militância de Alizadeh se mistura com a história recente iraniana. Em 2005, ela participou da campanha feminista Um Milhão de Assinaturas, iniciativa de mulheres iranianas  para pressionar o regime pelo fim de leis discriminatórias.

Foi nessa campanha que a estudante de cinema e arte conheceu Nasrin Sotoudeh. Nos anos seguintes, a advogada se tornaria o maior expoente da luta pelos direitos humanos no Irã —e um dos principais alvos do regime.

Em 2009, Alizadeh participou das manifestações da Revolução Verde, contra a eleição fraudulenta de Mahmoud Ahmadinejad. A cor verde foi usada durante a campanha do candidato moderado Mir Hussein Mousavi, que prometia mais abertura para mulheres.

Por causa da sua participação, passou 21 dias em uma cadeia para presos políticos. "Eu esperava ser presa na rua, durante os protestos. Em vez disso, às 2h, homens invadiram a casa onde eu morava com os meus pais. Tinha 24 anos e estava no último ano da faculdade", conta Alizadeh.

Ela foi condenada a dois anos por conspiração contra a segurança nacional, mas a sentença foi suspensa mediante o pagamento de uma multa. Depois disso, conta, as oportunidades de emprego no setor público se fecharam, e ela passou a fazer principalmente trabalhos temporários.

No início de 2016, Sotoudeh, que já havia ficado presa durante três anos, pediu que a cinegrafista participasse da gravação de um documentário sobre sua vida. Ela, no entanto, não sabia que o material seria editado pelo diretor norte-americano Jeff Kaufmann.

"A filmagem do seu trabalho tinha dois propósitos: iria para um diretor fora do Irã, cujos detalhes ela preferia que eu não soubesse, e eu mesma faria um filme sobre a sua vida. No meio desse projeto, agentes de segurança começaram a ameaçar Sotoudeh e eu."

No final de 2017, essas ameaças levaram à paralisação das filmagens. Meses mais tarde, em junho de 2018, Sotoudeh foi presa. À época, Alizadeh vivia uma relação com outra mulher, o que no Irã é um ato passível de pena de morte.

"Decidi então deixar o país. Senti que não tinha força emocional e psicológica para enfrentar outra prisão", diz.

A cinegrafista escolheu o Canadá. Em 2018, conheceu o iraniano-canadense Reza Sahami, 56, apresentado como sócio de agência de viagens.

Após uma tentativa frustrada de conseguir um visto de turista no consulado do Canadá na Turquia —o país não tem representação diplomática no Irã—, Sahami ofereceu  nova rota, via Equador, que não exige visto para iranianos.

O plano era simples: a cinegrafista conseguiria o visto de turista no Equador e dali seguiria para o Canadá, onde pediria refúgio na chegada.

Alizadeh chegou a Quito em 8 de janeiro, mas, em vez de visto de turista, Sahami lhe deu passaporte falso canadense. Ela se recusou a embarcar.

Após semanas de impasse, Sahami levou o grupo de forma clandestina para o Peru, de onde o embarque seria mais fácil do que no Equador. Era 22 de março, o início da epidemia da Covid-19. Os voos internacionais foram suspensos.

Alizadeh havia começado uma tumultuada relação com Sahami. Conversas de celular mostram que, enquanto trocava mensagens amorosas com o coiote, a cinegrafista o chamava de "traficante" e o criticava para seus amigos.

Essas mensagens seriam usadas mais tarde pela PF como indícios de que Alizadeh trabalhava com Sahami, e não era só sua cliente. O Ministério Público Federal (MPF) acabou acusando os dois por tráfico de pessoas. Procurada, a polícia disse que não se  pronunciaria sobre o caso.

Em agosto, Sahami convenceu o grupo de iranianos a cruzar ao Brasil por terra, chegar a Rio Branco, embarcar para São Paulo e dali para o Canadá. Foi quando houve a prisão, após a PF receber denúncia anônima sobre a tentativa.

Atualmente, só Alizadeh está no Brasil —ela ganhou a liberdade após pagar R$ 2.000 em fiança. Sahami também foi solto e voltou a Teerã. A defesa da iraniana está a cargo da Defensoria Pública da União.

Em Rio Branco, ela tem contado principalmente com uma rede de mulheres criada por Solene Oliveira da Costa, ouvidora da Defensoria Pública, que a conheceu na prisão, quando Alizadeh enfrentava uma crise depressiva. A cinegrafista a chama de "anjo".

"Ver aquela mulher algemada, sem falar português e chorando copiosamente me fez chorar também", lembra Costa. "Eu não entendia nada do que ela falava, mas eu sentia o corpo dela tentando entender o que estava  acontecendo", ela acrescenta.