Sempre perfumei as madrugadas com o cheiro delicioso do meu café, matando a vizinhança de inveja, sem nenhum incidente. No entanto, essa honraria findou ontem antes do nascer do Sol.

A minha garrafa de café foi adquirida em abril de 2016, ano em que o Fantástico, pediu ao Inmetro para que o órgão testasse a garrafas térmicas. Das nove marcas avaliadas apenas uma foi reprovada, a que eu tinha na minha cozinha. Percebi então que a garrafa rejeitada começou a vazar.

Retirei a capa externa, verificando se estava quebrada, com a parte interna cheia de água quente. Escorregou das minhas mãos, bateu na pia e derramou a metade do líquido no meu braço esquerdo. Corri ao Pronto Socorro de Queimaduras, deixando para trás o barulho insuportável do vizinho do andar de cima, que trocava o piso do seu apartamento. Saquei o cartão do Ipasgo do bolso com a mão direita. Entre consultas, procedimentos, anestesia etc., fiquei novecentos reais mais pobre.

Atravessei a porta e adentrei a sala de espera, “você queimou como?”, alguém perguntou. Minha dor foi amenizada ao observar as dores vizinhas. Fui atendido por uma médica gorda e simpática e por uma enfermeira que caminhava bem devagar, mas que falava depressa.

No dia seguinte, de manhã, lá eu estava para a sessão de tortura, acompanhado do filho gordo, para a raspagem da queimadura. Cheguei cedo, antes mesmo da recepcionista. Com o passar do tempo, mais queimados foram chegando. Lá pelas 9h da manhã, a sala de espera estava cheia de mortos-vivos, comentando a sua tragédia particular com entusiasmo.

“Jejum absoluto” dizia o cartaz na parede. Enquanto o procedimento não ocorria, eu revezava a minha angústia, entre fome e o ardor da queimadura provocada pela água quente de um café que eu não tomei. Olhei para o lado da porta procurando a claridade da rua, enquanto mais um obeso se adentrava á sala de espera. Ele vestia uma camiseta gospel de cor preta, de malha, com os seguintes dizeres: “O fogo é Glória”. Não entendi.

Olhei para o relógio torto na parede, que apontava 10h em ponto. Já era hora para ter fome. Finalmente escutei alguém chamando pelo meu nome e sobrenome. Entrei com a barriga ronquejando. Ansioso tirei o tênis, calcei uma meia transparente e entreguei os meus pertences ao acompanhante.

Deitei-me numa cama de metal, sem colchão, com formato de cruz. A estagiária foi chamada para assistir o meu sacrifício. “Está vendo aqui? Assim você vê qual é a melhor veia”. Disse a mais experiente depois de amarrar o garrote. “Pede para o paciente abrir e fechar a mão”. Determinou virando de costas. A principiante descobriu a melhor veia com uma expressão de gozo. Quando eu olhei para a mão da novata, ela estava com cateter posicionado para me perfurar. Fiquei em pânico. A enfermeira

instrutora continuava: “agora introduza o cateter periférico com o bisel voltado para cima até aparecer o sangue”. Fiquei na dúvida, grito ou não grito. “Para”, gritei. “Desculpe, eu sei que ela tem que aprender, mas importa-se de não ser eu a cobaia?” “Claro senhor, sem problema”. Respondeu desapontada.

O anestesista chegou em seguida repetindo as mesmas perguntas. “Você vai dormir um pouco”, informou secamente. Olhei para uma mancha no teto até ela e eu desaparecermos no sono arrebatador. Sem noção do tempo, uma voz distante me dizia que já era hora de voltar para este corpo que ainda me pertencia. O meu acompanhante “magro” de fome, me leva de volta para o mundo real. Almocei a comida da filha, que devagar vai fazendo as pazes com a arte culinária. De volta para casa, reencontro-me com o som das marteladas do vizinho do andar de cima, que continuava quebrando piso. De volta ao mundo sem anestesia.