Everton Arieiro - Professor

A satisfação, às vezes, é semelhante ao descontentamento. Olho os soberbos brincando com seus carrinhos a controle remoto, quando cansam, param um pouco e prendem-se com os olhinhos fitos aos tablets. Não é ruim ver isso. Só acho ruim ver o tempo passando à minha frente, como um filme, já na TV digital, porém, sem muita qualidade a ostentar, apenas reprisando as dificuldades de outrora.

Considerando que qualquer carrinho que se movesse a pilhas já era motivo de orgulho, e as brincadeiras, tão reais quanto as historinhas presentes nas caixinhas, com as palavras escritas em inglês, e o desenho de perseguições policiais, muito claro e tendencioso à brincadeira que aconteceria posteriormente.

Em mil e novecentos e noventa, às vésperas do Natal, em meu sono tranquilo, um barulho tomou conta do meu sonho. Eram sirenes, que aos poucos foram enchendo a casa. Fui acordando devagar, a realidade começava a se misturar ao sonho. O ambiente foi tomado pelo barulho, e, atordoado, comecei a tentar entender. Vi que havia uma sombra. Muitas luzes piscavam, deixavam meu olhar confuso; uma perseguição policial estava acontecendo; três viaturas circulavam, todas elas com sirenes ligadas, assim como seus faróis, iluminando as extremidades do lugar, fazendo trajetos em círculos, deixando qualquer fugitivo em desespero. Agora, eu via os carros brancos circulando na escuridão, em cada lado de cada carro, um policial com os braços para fora, com revólveres em punho, camisas marrons, luvas, chapéus, a procura de fugitivos. Demorei um pouco mais para entender o que se passava, até que a sombra se moveu em minha direção, com mãos fortes me ergueu e disse: - Feliz Natal.

Era o meu pai, que me deixou tranquilo ao acender a luz. Então me fez ver os carrinhos policiais a pilhas, que estavam girando embaixo das camas. Eram nossos presentes naquele ano.

Os dias seguintes foram de muita procura por bandidos, os policiais tinham muitas falas e, sempre que se cruzavam, tinham lá seus cumprimentos, a brincadeira nunca tinha hora para terminar. Geralmente, mesmo que as pilhas acabassem, tínhamos formas diferentes para continuarmos as brincadeiras.

Pouco tempo depois, as viaturas dos meus irmãos começaram a estragar. A primeira delas queimou uma lâmpada. Em pouco tempo morreu um policial. Depois o outro. Então a viatura ficou encostada. Os pneus foram murchando, os adesivos foram descolando, a carcaça perdendo o brilho, o carro foi à sucata; a outra viatura passou por situação semelhante; mas um dos policiais perdeu o braço em um acidente, até que em uma catástrofe perdeu a cabeça. O carro, sem um motorista que o cuidasse virou sucata em pouco tempo.

Os meus policiais tiveram vida um pouco longa. Viveram doze anos com as armas em punho. Mas, infelizmente, uma criança os pegou para brincar. Como não era igual a mim, que sabia da importância​ de ficar esperto próximo da favela, deixou o soldado cair. Tentando acudi-lo, derrubou o outro, e ainda bateu a viatura, que ficou irreconhecível. Morreram os policiais, quanto à viatura, não restou quem restaurasse.

O jeito foi despedir-me de minha viatura e de meus soldados, lembrei-me do dia que nos conhecemos; do medo que senti ao ouvir o barulho. Lembrei-me do abraço que recebi do meu pai, de sua voz tranquilizadora em meio aos meus medos. (Everton Arieiro - Professor)