Eu e meu filho caçula passeávamos de bicicleta na Praça dos Girassóis na manhã de domingo, 24 de abril, dia de vestibular da Universidade Federal, após deixar no IFTO uma sobrinha que viera de Goiânia para a prova. O sol amanhecera desabrido e o céu anilado animou meu filho caçula a dar uma volta de bicicleta. 
 
No Monumento à Bíblia, ele olhou para uma pessoa que se aproximava e disse-me: ‘Pai, o indígena que tava na casa do João [onde eu o entrevistei o indígena em junho de 2021, na companhia deste meu filho]. 
 
Sem óculos de grau eu não divulgava direito a pessoa até reconhecer o indígena Karajá, de 22 anos, que eu havia entrevistado na companhia do caçula, cuja memória me levou a perguntar o que o indígena fazia ali, sozinho, e se lembrava-se de mim.
 
- Estou perdido. Eu fui roubado. Levaram meu celular e meu dinheiro. 
 
Ele saíra da Aldeia Fontoura, na Ilha do Bananal, e chegara no sábado, 23, de madrugada, na Rodoviária. Trazia R$ 500 reais e um celular que ganhara do pai, um artesão de cocar tradicional (raheto, lê-se rarretô) para tentar o vestibular pela segunda vez. O dinheiro era para o hotel e a passagem de volta.
 
-“Eu peguei mototáxi e pedi para me deixar no hotel. Ele me deixou no centro e apontou onde eu tinha de ir pra chegar [no hotel]. Eu rodava [procurando o hotel] e duas pessoas de moto pararam, apontaram arma pra mim e disseram: se correr eu te mato. Eu levantei as mãos. Eles pegaram o dinheiro e o celular”, contou, sob lágrimas tristes.
 
Ele havia passado o dia inteiro de sábado e até aquela hora da manhã, nas proximidades da Assembleia Legislativa. Assustado. Perdido. Sem comer. Sem dormir.
 
Propus que ele me esperasse ao lado da Assembleia enquanto ia em casa apanhar a condução para o apanhar.  Ele devorou com rapidez o lanche que lhe ofereci e o levei para casa. Pediu para dormir e se aninhou no sofá da sala até ser acordado para o almoço, que repetiu três vezes.
 
Eu acionei a jornalista que o me apresentara no ano passado. Não conseguimos localizar nenhuma casa de apoio ou quem pudesse amparar aquele jovem estudante indígena naquele dia de agonia. 
 
O transporte para a cidade próxima à aldeia do indígena ocorre uma vez por semana, justamente no domingo à noite.  A rede de apoio encabeçada por aquela jornalista conseguiu ir até a rodoviária e comprar uma das duas últimas vagas no ônibus com partida às 21h15, mesmo assim para uma cidade próxima do ponto final do indígena, pois a de destino, São Félix, se esgotara. Era isso ou ele teria de passar uma semana em Palmas até a próxima partida, no dia 1º de maio. 
 
Esse fato simples, mas grave, revela a falha de um sistema educacional - e de sociedade não-indígena que não possui ações afirmativas que possam, de fato, oferecer suporte mais amplo para acesso e permanência de indígenas no ensino superior, além das cotas.
 
É triste a situação de abandono social vivida por um jovem indígena que querem estudar, mas não têm apoio algum. Uma viagem perdida de mais de 15 horas de ônibus. E uma tentativa frustrada de ingressar no curso de Filosofia. 
 
-Eu não confio no meu estudo para [tentar o vestibular] de Direito, então marquei Filosofia, só para passar e vim para Palmas.
 
Quando eu o levava para o embarque ele puxou um diálogo: 
- Me ajuda a arrumar um emprego. Qualquer emprego.
- Como assim, qualquer emprego?
- Qualquer emprego, só para eu [me] mudar pra Palmas.
 
Na Rodoviária, eu o deixei na companhia da jornalista, de uma cineasta e um amigo delas, que cotizaram comigo as despesas de viagem do estudante. Eles lhe fizeram companhia até seu embarque, com destino à comunidade dele.
 
Antes delas chegarem, quando o deixava na plataforma 11, ele me abraçou e me fez um convite: 
 
- Em 2023, vai ter festa do Aruanã do meu irmão. Você é convidado da minha família, vai ficar na casa do meu pai Taiarawa. Eu vou pescar muito peixe para você.