Era sábado à noite, seu cunhado, recém-divorciado, convida o casal para assistir o filme Vidro, terceiro e último capítulo da trilogia baseada em uma trama de "super-heróis,” iniciada com o filme Corpo Fechado e, em seguida, Fragmentado, com Bruce Willis e grande elenco.

O convite era uma tentativa de o irmão da esposa evitar ficar sozinho com a atraente jovem ruiva, que demonstrava interesse em reatar laços afetivos anteriores. Interesse que já resultara na germinação de uma bela criança rosada. Para garantir sucesso da não recaída do mano, a mãe – dele e da esposa – se ofereceu para ir, formando com o casal um trio de proteção ao seu filho mimado. Uma espécie de Três Mosqueteiros ou Cupidos ao revés.

A esposa, com o cartão de crédito em mãos, pergunta ao companheiro se ele quer esfirra do HABIB'S. Ele respondeu que estava sem fome. Ficou aliviada, iria economizar, já que a fatura do cartão estava nas alturas. A mãe e sogra falante pagou seu próprio lanche, maneirando a barra.

Na compra dos ingressos, a esposa fica exaltada com o esposo, pois ele não trouxe o contracheque para pagar meia entrada. Teve que escutar uma frase do tipo: “você devia servir para alguma coisa”. Ele argumentou que deixou de aceitar o lanche oferecido, por não ter mais o Auxílio Refeição de R$500,00, desde novembro. E que, por enquanto, tinha a promessa do Governador de normalizar tudo só em março. Além de não ter, ainda, recebido o salário de dezembro. E lembrou a ela que não foi ele que inventou o programa daquela noite.

As únicas poltronas disponíveis eram de frente para a grande tela. E para fugir da câimbra nos pescoços, resolveram ocupar poltronas de cadeirantes. Ficaram aflitos até iniciar o filme sempre que entravam novos telespectadores. A película só começou às 22h30, após vários trailers de terror de mau gosto e assustadores.

Enquanto o personagem Kevin Wendell Crumb, o homem de várias identidades se transformava na criatura conhecida como A Besta, a sogra pergunta algo à filha, ouvindo uma advertência, “Psiu”, que veio da fileira anterior. O marido observa que a esposa já tinha lanchado e sobrava uma esfirra na caixinha, no colo dela, enquanto o seu estômago roncava de arrependimento e fome. Já o cunhado e a ruiva não tinham devorado ainda os 10 quilos de pipoca artificial, de odor insuportável.

Depois da duração de 2h09, luzes horizontais e verticais acendem suavemente, enquanto as letras na telona sobem ligeiras, acelerando o fim do tormento e da missão em prol da não reincidência do cunhado meninão. E para garantir o sucesso da tarefa, a sogra comunicativa, disponibiliza-se para acompanhar o filho e a ruiva na volta para a casa dela. Só para garantir.

O casal do conflito ganha velocidade na úmida Marginal Botafogo. Na mente dele vem a imagem do personagem David Dunn sendo afogado numa simples poça de água, cravada no asfalto, por dois policiais. “Por que ele não reagia? Não seria difícil”, pensou. Não fazem finais como outrora. Em seguida percebeu a inutilidade daqueles pensamentos. Afinal, ele também se afogava em poças menos profundas no cotidiano.

Chegam em casa de madrugada. Ambos com carantonhas de arrependimento. Ela não quer saber de intimidades. Talvez nem ele. Mas quem sabe a noite poderia ser salva. Tentativa inútil, ambos viraram as costas e começaram a lembrar de tudo que não deu certo naquele sábado e em suas vidas. E não faltou, também, referência à suspenção do Auxílio Refeição. O grande vilão, responsável pelo estrago da noite. Pegam no sono, vencidos pelo cansaço. O clarão do Sol anuncia o fim do pesadelo noturno. Ele levanta-se, procura algumas moedas que já não estão no local de costume. Com o cartão de crédito, caminha até a padaria, tentando digerir a noite que ainda não tinha findado.