Marciley Dias
jornalista, especialista em Marketing Político

Os cachorros latem no sertão da zona rural no município de Dois Irmãos. Uma voz ecoa com tom de braveza da varanda da casa, “raiando” [censurando]: – Cachorro! Cria vergonha! Vai te deitar! 

Eu soube na hora que era visita.

Com uma mão nas cadeiras [os quadris] e a outra aberta sombreando os olhos, já meio diminuídos, vozinha Carlota mira a estrada. – Quem será que vem aculá?... Ah, menino, é a cumade Creuza, do cumpade Jusé Pioí.

Já se aproximando do “terreiro” [quintal], um sorriso tímido, mas verdadeiro, abre os cumprimentos.

– A Deus, “cumo” vamo  por cá, cumade Carlota? 

– A Deus, “cumo” vamo por lá, minha cumade Creuza?

 Se abraçam, de um lado e do outro. É a senha para o convite gentil. – “Rumbora” chegar. Senta, cumade. E seguem as indagações...

– “Cuma” é que tá cumade?

– Tô boa cumade, graças à Deus. 

–  E tu siá? 

– Tô boa também cumade, “véi” nunca fica bom, mas tô pisando.

–  E meu cumpade Jusé, cuma é que tá?

– Tá lá naquele “rojão” [vida difícil] véi dele, mas tá pisando.

O papo segue. – Cumade, têm notícias do cumpade “Pêdo”? [Era vizinho de fazenda e casado com Dona Eva, irmã de vó Carlota. Ele era uma referência na região por ser homem sábio e vivido, já passava dos 100 anos]

–  Cumade, faz dias que não sei notícias de lá. “Isturdia”[um dia desses], fiquei sabendo que ele tava mei perrengue [adoentado], mas acho que já ta mior, aquilo é cheio de tanta ciência. 

–  E que siquidão [a sequidão, secura] é esse cumade Creuza!

–  Avi-Maria cumade Creuza, aqui ninguém nunca plantou um caroço de nada até essa data, porque pelo jeito, nem promessa de chuva. 

A cumade Creuza frange a testa, cai o olhar piedoso e fala com voz mansa: – “Só se vê”. Cumade, nóis também tamo desse jeito. O Jusé tá com medo de plantar e a chuva demorar chegar e perder a semente, que quase já não tem….desse jeito cumade.

–  Esse ano o inverno parece que vai demorar, aqui tá um siquidão.  O “Forno Véi” [um córrego] pode fazer tocar fogo “dento”, ta de fazer dó. Até a cacimba do vajão [varjão] da Grota Grande [um córrego], que nunca tinha secado, já tá com a água só o polme [massa de terra um pouco líquida], se não chuver logo, nem sei mermo [mesmo] o que será de nóis. Nunca nem tinha visto uma coisa dessa. Os “animale” [animais], tivemo que botar praculá, pra beira da grota grande, lá ainda tem uma “babuginhas” [capim ralo, de rebrota]. Mas lá já tá cortado, mas ainda tem uns poços [poças] pra aqui pra “culá”...água amarelada, feia, mas dá pros bichos beber ainda. Aqui em casa a salvação é esse poço [cisterna] que já tivemo que esgotar foi muita vez [secar a cisterna, às vezes cavando um pouco mais para a água ressurgir], mas a água quase não cresceu nada, quando o balde bate, a água vem barrenta, tem que cuar bem cuada pra botar no pote e ainda esperar assentar.

– Cumade lá em casa tá do mermo jeito - um siquidão que “só se vê”. Soltamos os bichos pro vajão, lá ainda tem umas babuginhas também, pra ir “intertendo” [distraindo] os animales, e pra nóis e prus bichos de casa [animais domésticos], tomo buscando água na cacimba da cabeceira [nascente], mas até lá que nunca secou, nesse ano tamo com medo, a água ta baixa e basta triscar, o polme sobe. É regrando água pra tudo, to vendo a hora e instante de ficar sem água e passar até sede que Deus me livre. Até os meus pés de pimenta do reino nunca mais viram água.

–...É, mas sei que não vai demorar chuver mais não, minha cumade Creuza, Deus é pai! Cumade, vou botar a rabeira no fogo, passar um café pra nóis beber.

– Precisa não minha cumade.

– Avi Maria, precisa sim! É num instante cumade.

Num copo pequeno sobre um prato, o café é servido. – Ô café bom cumade Carlota! 

–  É um restinho do que torrei isturdia.

Passados alguns minutos: – Cumade Carlota eu já vou indo.

– Mais tá cedo cumade Creuza.
 
– É cedo mermo, cumade. Cumade Carlota, a senhora ainda tem gordura de porco pra me arrumar um pouco?

– Vocês tão sem gordura minha cumade?

– Acabou semana passada siá. Tamo com um porco no chiqueiro, tá até cevado já, mais tamo esperando os menino chegar de  Goiânia, em dezembro.

– Vixe, cumade, tá é longe! Quantos litros a senhora queria, cumade?

–  Acho que uns 10 litros dá pra esperar a “matula” [provisão] do porco.

– Arrumo sim minha cumade, ainda tem uma lata e meia aqui e tamo com um porco engordando e já tá gordo que é uma beleza.

Enquanto isso o sol vai baixando no poente. Já marca, no tempo do sertão, umas 4 e meia da tarde. – Agora preciso ir minha cumade, tá “dinoite” [exagero comum na roça]. Ainda vou cuidar numa janta. O Jusé foi na rua comprar uma soda, mas sei que ele já vem pra cá do Lajeado [rio]. Foi atrás dessa soda, porque os pequis começaram a cair, e quero fazer um sabão, o do ano passado já tá pouco, tá acabando. Pois té logo, cumade Carlota. [a despedida é reiterada]

– Tá cedo minha cumade Creuza.

– Até por lá, minha cumade.

– Até por lá, ou por cá “dinovo”, cumade Creuza. 

Os cachorros latem novamente, dessa vez mais brando, sem braveza...Com passos avexados, a “cumade” Creuza sobe ladeira acima e some na estrada tropeira. 

Eu, o menino que ouvi esse diálogo com ouvido de criança, vi vozinha Carlota [falecida há três anos, em 9 de maio de 2017] abrir um sorriso discretamente da satisfação pela visita e por ter servido bem sua “cumade”.