Lita Maria
Escritora
 
Antes que o leitor apregoe fotos e fatos, alegando que viram o corpo do menino do Mississippi ser levado para Graceland, arrisco: “Elvis não morreu”. Não me atrevo a trazer nesse 16 de agosto a biografia do ídolo, cuja primeira influência musical foi a música gospel, transitando também pelo pop, country e blues, segundo registros colhidos na internet. Mas, o Elvis que não morreu é o Elvis que encheu, como só ele foi capaz, nossos olhos e coração com um rock nunca visto antes, com as suas interpretações cheias de energia, provocadoramente numa performance corporal carregada de sensualidade. Eu até arriscaria mostrar o pote do meu espírito, transbordando Elvis. Aquele que não morreu. Mas, eu não transito bem pelas nuances dessa linguagem. Há coisas que a gente sente, mas desconhece a abordagem técnica.
 
Era uma tarde fria de agosto. Aquela mocinha pacata acabara de completar 15 anos. Não dava notícia de bailes de debutantes, tão comuns naquele 1977. Nada sabia desse “rito de passagem” e seus tradicionais vestidos bufantes, apresentados à sociedade. É proposital o ordenamento de ideias, onde os vestidos eram apresentados à sociedade, à alta sociedade. Vestidos com mocinhas perdidas dentro de tafetás, sedas, rendas e veludos, envergando sobrenomes e joias de família. A minha mocinha primaveril nada sabia sobre vestidos caros, de gala, esvoaçantes ao som de valsas, no meio do salão.
 
Era 1977 e a mocinha não dava notícias dessa ritualidade, tão comum ali naquela cidade, embora conhecesse muitos tecidos, tanto finos quanto rudes. Embora tivesse dedos ágeis, treinados nas longas costuras, caseando botões, ajudando a sua mãe costureira. Infância tumultuada, cheia de privações tal qual a infância de Elvis. A menina do interior de Goiás aprendera cedo a acomodar diariamente as suas mazelas. Seus dons artísticos brotando e consumindo-a tal qual a música engolia Elvis na sua adolescência.
 
De lanterninha de cinema a motorista de caminhão, Elvis conseguia tempo para cantar e tocar o seu violão. A menina com nome de santa, nos poucos momentos de folga da labuta doméstica e do cuidado com os irmãos mais novos, conseguia tempo para desenhar, escrever, dançar e cantar as músicas do rei do rock, num arremedo de inglês, fazendo o cabo da vassoura de microfone, esgoelando feliz.
 
Sobre a menina, perco-me pensando nos sonhos que encabulavam aquela cabeça morena, cabelos encaracolados e sorriso farto e perfeito. Donde? Donde se perde tudo num fim de tarde de domingo? Como acidentes trágicos e avassaladores apagam, sem cerimônia, os sonhos e emudecem sorrisos?
 
Na França de 1858 uma outra menina tem seu primeiro encontro com certa santa, numa gruta. No Brasil, em Trindade-GO, eu ia muito na pequena grutinha de pedra, onde a estátua da mesma santa vigiava diuturnamente. Ali, a estátua, o laguinho, as paredes de pedra, as velas queimando, nunca pensei em pedir à santa que nos protegesse. Nem sequer me recordo do que eu exatamente fazia ali. Arrisco dizer que somente brincava. Sendo criança, era também uma espécie de oração. Reminiscências... 
 
Junto com os bailes de debutantes, na moda em 1977, os corações das meninas de quinze anos, também bufantes de paixão, rodopiavam agitados, na descoberta do primeiro amor. Isso tudo ficou tão longe, lá em Trindade, interior de Goiás. A mocinha chorava de amor, ensopava o travesseiro com as lágrimas da primeira paixão.
 
A saudade que sinto hoje não ajuda a clarear as lembranças para contar se a música do Rei do Rock, enchendo o quartinho, saía de um pequeno rádio de pilha ou de uma espécie de gravadorzinho, onde uma fita cassete, magnética, de plástico tocava, vou arriscar novamente, Love me Tender.
 
Eu, irmã mais nova, nos meus dez anos, não tinha ideia do que era falado na canção, naquela língua estranha. E mesmo hoje, mais de quarenta anos desse fim de tarde, em Trindade-GO, não arrisco uma palavra traduzida. Seria macular o propósito desse escrito.
 
A voz de Elvis Presley – A VOZ – barítono? Também, não ouso. A voz enchia o quartinho. Um frio mais frio que o frio que ali estava, sufocava. Decerto porque o coração não aquecia.
 
Queria voltar àquela tardinha, me apropriar da música certa que tocava. Impossível. Era Elvis. Era o Rei. Era “A Voz”. Aos dez anos de idade, menina simples, eu não entendia a letra. E hoje não consigo acessar na lembrança, uma sílaba sequer do que eu ouvia. Tampouco palavras ou frases, para identificar aquela canção. I Forgot to Remember to Forget? Suspicious Mind?  Always on My Mind ou Separate Ways? Não sei. Por isso, arrisco que era Love me Tender. Era Elvis e pronto.
 
Recordo-me que era triste. E só. Um fiapo de dor saindo do aparelhinho. Eu tentei, caro leitor, juro que tentei achar a canção. E hoje, quarenta e três anos depois da morte do rei (mas, Elvis não morreu!) aqui rabiscando essas linhas, ouvi quase uma centena de músicas dele, afirmo sem corar. Centena! Tentando encontrar a que tocava no aparelhinho em 1977. Mas, a memória me trai. Revela e se esconde. Nessa busca, ouvindo, ouvindo, ouvindo, lágrimas saudosas foram vertidas. Que saudade da minha irmã! Chorosa aos quinze anos pela dor do primeiro amor!
 
Nome de santa, alma de menina, bondade transbordante no olhar, nos gestos, nas palavras. Nunca conheci ninguém com mais maternidade do que ela. Ela era toda maternidade, até nos poros. Transpirava maternidade. Mas, desencarnou aos vinte e seis anos, sem a experiência terrena de embalar ao seu seio, um filho seu.
 
Era 1977, fim de tarde de agosto. Eu, moleca, correndo atrás do Bareta, um cachorro magro, de dentro de casa, empurrei a porta do quartinho e ela lá, deitada, abraçada ao travesseiro, chorando. À vezes eu era chamada de Bareta também, pela semelhança da penca de lêndeas e piolhos com as orelhas compridas do Bareta cachorro, com pencas de carrapato. Elvis, ali, no aparelhinho, ofertando a melodia, talvez Love me Tender, arrancando lágrimas precoces da minha irmã. A menina com nome de santa chorou naquele 16 de agosto de 1977, quando a notícia chegou pelo rádio de pilhas. Fãs choraram. O mundo chorou. Minha irmã chorou. Elvis morreu (Ou não?).
 
Contam hoje, quarenta e três anos dessa dor. Eu não me lembro direito como aconteceu. Ouvi a notícia e voltei para as encardidas bonecas de pano. Aos dez anos, não me comovi, vertendo lágrimas pela morte do rei do rock. Quando era chamada de Bareta, com suas pencas de carrapato, sim. Vertia que empapuçava os olhos. No dia da notícia, escolhi brincar. As bonecas de pano, encardidas, elas sim, viviam histórias mirabolantes de romance, deleites e opulência nos enredos que eu inventava, cortando e costurando os trapinhos que caíam pelo chão da máquina de costura. Ali, na minha casinha de boneca, ninguém morria.
 
Hoje, as lembranças que guardo de ambos – Elvis e a mocinha com nome de santa –  orquestram uma saudade doída. O Rei do Rock, com as suas legiões de fãs e biógrafos, ainda alimenta paixões, a indústria musical, e até teorias da conspiração. A primaveril mocinha alimenta um lugar particular, escondido dentro de mim. Ela oferta-me, vez ou outra, seu sorriso maternal, entregando-o num sonho, numa expressão lida ou ouvida ao acaso e, hoje, 16 de agosto de 2020, entregou-me o seu sorriso cálido na canção Love me Tender, na voz de Elvis Presley, alimentando a minha saudade e resgatando lembranças da minha meninice, naquele início de noite fria, em Trindade-GO, onde eu, aos dez anos de idade, empurrei uma porta e vi lágrimas primaveris vertidas por uma menina de 15 anos. Minha irmã querida! Nome de santa descoberta em gruta na França! Quanta saudade! Love me Tender!