Roberval Paulo - Poeta

 

Era por volta das dez horas da noite e um vento rarefeito e cortante rasgava o nevoeiro de um céu pouco estrelado, incógnito e embaciado por espessas nuvens, trazendo um aspecto quase que fantasmagórico à paisagem. Pessoas conversavam e sorriam nas portas da principal rua da pequena cidade, alheias às intempéries e transmutações do tempo. Crianças brincavam e corriam descalças e desnudas no sobe e desce da rua enladeirada, iluminada por parcas e opacas lâmpadas, penduradas em postes de madeira roliça e mal talhada, dispostos uns dos outros à distância de formar sombra entre uma e outra, emprestando ao cenário um visual ainda mais desolador e meio que mal assombrado, mas que em nada incomodava ou amedrontava os seus moradores, que em total tranquilidade e paz, regozijavam-se em doces e sonoras gargalhadas, espalhados pelas portas e janelas nas tradicionais e enriquecedoras noites do povoado.

Lá no final desta rua principal, depois de subidas e descidas e de uma curva acentuada para a esquerda que engolia na sua volta toda a visão da cidade, abria-se uma rua secundária. Rua estreita, de blocos de pedras dispostos à mão, com piso altamente irregular, acentuando a irregularidade a quanto mais se avançava pela rua, parece que no claro intento a desacelerar o ânimo e a marcha do transeunte, levando-o, quase que obrigado, a promover parada na única bodega da localidade.

Era um prédio caiado à moda das outras edificações do povoado. Paredes embolsadas em barro e cal e parte com adobes à mostra, dispondo de duas largas e desfiguradas portas a facilitar a entrada. Salão retangular, balcão ao lado e à direita de quem entra a vigiar a saída e mesas e cadeiras espalhadas sem forma. Atrás do balcão uma prateleira de madeira feita a mão e pregada à parede, onde se via quase todo o estoque de mercadorias da bodega: algumas dúzias de garrafas e aguardentes em infusões de todos os gostos, de ervas medicamentosas às de curar mal olhado, segundo a ciência popular; secos e molhados em geral, biscoitos sortidos de sal e doce, fumo de rolo e outras tantas quinquilharias de consumo urgente da freguesia. O balcão decorado pela doceira carrossel, repleta de balas, chicletes e pirulitos; a tradicional balança de pratos e um calhamaço de papel de embrulho descansando sob uma pedra rústica e disforme que ali servia de peso, intimidando a ação forte do vento, que, arrepiante, soprava. Completando o cenário, sacas de cereais espalhadas, em grande quantia, para venda a granel.

No espaço compreendido entre o balcão e a prateleira estava sempre Zé de Nicanor, o proprietário da bodega, a atender a freguesia do mercado, como também os amantes das noites de bar. Como já era noite, o ambiente mal iluminado e regado a cheiro de álcool e fumaça estava lotado. Uns contavam piadas, outros reclamavam; uns lamuriavam-se pela incompreensão da mulher enquanto que um outro, tirado a poeta, dizia da ingratidão do mundo com a existência humana, de modo que ali todos se davam ao momento e se esqueciam da batalha do dia a dia pela sobrevivência e seus consequentes agregados.

Na mesa ao lado do balcão por onde o público obrigatoriamente trafegava ao adentrar o bar estavam Biliu de Bastião e Chico de Martinha em conversação que não vencia. Entre um e outro gole, ânimos já alterados, cada qual mais valente e atrevido, lançavam as mais absurdas propostas e desafios de toda sorte, buscando um sobrepor-se à matreirice do outro, no que atraía a atenção total de todos para a mesa, arrancando gargalhadas a fio e estimulando algumas apostas.

Num repente, Biliu de Bastião, sentindo-se acuado e acossado pelo amigo, desafia Chico de Martinha e em alto e bom som grita.

— Você num tem coragem não cabra, você tem mermo é muita gabolice ora.

Chico, sentindo-se ofendido, não se dá por vencido e retruca:

— Mair num tô dizendo mermo. Pelo que sei frouxo aqui é você. Fique sabendo que eu até mei primo de Lampião sou viu e só num fui pro cangaço com ele porque mãe num deixou.

A plateia grita e aplaude. A essa altura, os presentes da bodega deixam por um tempo suas lamúrias e queixas e formam um círculo em volta dos contendores, manifestando-se em coro a cada nova investida dos tais.

— Ara sô, olha o que diz o mequetrefe. Quer ver que tu num tem coragem? Aposto cem conto de réis que tu num tem — Diz Biliu.

— Aposta que vem é aposta que vai, tá valendo então. Manda aí macho — Responde Chico.

— Pois tá, tu é de coragem mermo é? Então bom. Quero ver você ir agora no cemitério e catar uma cruz da catacumba e trazer aqui ó. É cem contos de réis a aposta. Tu num diz que é de coragem — Desafia Biliu.

Chico dá uma boa gargalhada e diz — Pensei que era desafio de coragem rapaz, isso aí é café pequeno pra mim —Torna a gargalhar e completa — Põe o dinheiro da aposta na mão aí de Zé Lagoa que eu já tô saindo e já já tô aqui de volta todo de cruz nas costas — Faz um gesto de mugango simultâneo à finalização da frase e sai a passo ligeiro rumo ao cemitério sob os olhares da plateia estupefata e em tenebroso silêncio.

Lembrando que a esta altura, o relógio já batia pra mais de onze horas, aproximando-se da meia noite, hora do mistério noturno. Eis que com a saída de Chico rumo ao cemitério à cata da cruz, objeto da terrível aposta, deixando para trás todos os presentes apreensivos e ao mesmo tempo eufóricos, o volume das apostas só aumenta e o conversê toma corpo com todos falando ao mesmo tempo e apostando. Entre um grito e outro de crença ou descrença na volta de Chico com a cruz, Biliu disfarça daqui e dali e sorrateiramente deixa o local sem ser percebido.

Tomando a passos largos o caminho de casa e entrando em ponta de pé para não ser visto, lança mão de um enorme lençol branco e pega imediatamente um atalho rumo ao cemitério, arquitetando pregar uma peça no corajoso Chico que a esta altura devia estar às voltas de realizar seu assombroso encontro com a cruz. Cobrindo-se com o lençol e ajustando dois furos para descobrir os olhos, põe-se de prontidão na porta do cemitério e, oculto pela noite escura, fica o fantasma à espreita e espera do amigo, intentando pregar-lhe um susto e ganhar a aposta. Ali, com mais medo que espera, o tempo parece não passar.

Eis que em meio à penumbra, surge no corredor central do cemitério o amigo ombreando uma cruz pra lá de pesada, em total tranquilidade. Ao deixa-lo aproximar-se bem, Biliu fantasma levanta-se e emite aquele grito de fantasma, acreditando na carreira certa de Chico. Qual o quê!

Chico, corajoso que nem mãe em defesa da cria, ao invés de correr, investe sobre o fantasma com toda a ira da noite e de suas vidas passadas. O fantasma, surpreendido, sai de carreira com lençol e tudo. Chico quebra no joelho o braço da cruz e dá no lombo do fantasma ao mesmo tempo em que grita.

— Eita que hoje fantasma apanha mais num perdo meus cem. Fantasma hoje mostra se tem sangue ou se voa — E lapiada que come nas costas do fantasma, que, não aguentando mais, grita para o valente.

— Chico, sou eu, Biliu, seu amigo. Num me bata mais não. Já tô de costas quente.

Chico escuta mais num escuta e peia que desce no costado de Biliu e segue ainda a dizer:

— Ara sô, uma coisa que num sei dizer é se fantasma fala. Biliu é lá da famia dos fantasma? Biliu é vivo, vivim da silva e tá lá na bodega pra me pagar a aposta. Tome e tome que é pra num querer me fantasmar mais — E peia que canta no espinhaço de Biliu.

Biliu num aguenta mais e se entrega. Desvestindo-se do lençol, apresenta a cara apanhada a Chico. Este o olha espantado, com piedade safada nos olhos.

— Uai, num é que é Biliu mermo. Porque num disse logo homi, tinha livrado deu quebrar a cruz do defunto.

Biliu agora sente o medo da noite e sai numa carreira sem fim. Chico junta os pedaços dá cruz e logo chega à venda, onde todos estão em conversa de que este não volta mais. Ao enxergarem Chico e a cruz, surpresa nos olhos de todos. Uns gritam, outros recebem apostas, outros pagam. Uns fazem o sinal da cruz e outros deixam o local assustados. Chico recebe a aposta que estava nas mãos de Zé Lagoa e pede mais uma pra tirar a inhaca do cemitério. A noite é de comemoração e o medo ficou para trás.

De Biliu não se sabe e ninguém viu. Dizem que ainda deve estar por aí, vagando feito fantasma, a curar as marcas cravadas nas costas e na alma. O dia amanhece e a procura por Biliu norteia os sorrisos em todos as cantos da cidade.