Olho firmemente, aquela criança, parece um menino bom. Mas parece que ele tem algo de diferente; só isso para justificar a sua solidão. Só aqueles outros dois lhe deram atenção até agora. Acho que vou seguí-lo pelo resto do dia.

Estou vendo o motivo: lhe faltam condições financeiras; pela casa que ele mora, dá pra ver que não é filho de alguém bem sucedido. A casa parece cair aos pedaços, não tem garagem; pra quê ter garagem se não há um carro para guardar?

Motivos de sobra para que seja mesmo excluído. Mas quero continuar a seguí-lo, não sei se o depois do almoço dele equivale a ações posteriores ao almoço, ou está ligado ao período vespertino. Entendo que é a segunda opção mesmo, são duas da tarde, e ele está ali, com uma bicicleta velha, com certeza ganhou de alguém, as havaianas são diferentes, uma azul, e a outra, marron. Os remendos feitos na bermuda jeans, bastante surrada (parece mais que foi espancada), mostram que roupa também não é o seu forte, mas de todo jeito, eu fico olhando, e parece que estou simpatizado com essa figura, estou interessado em saber como será o restante de seu dia.

Ele resolveu ir para o bosque, um lugar bonito, muitas pessoas que passeiam por lá levam seus cachorros, limpos, de pelos bem cuidados, e ele, trás consigo, para minha surpresa, um violão.

E aquela menina? Passa perto, e parece que não foi só eu que simpatizei, mas estou de olho, e percebi que sua mãe lhe deu um tranco, e sussurrou: ‘além de pobre, é negro.’ Mas, não sou o único simpatizante. A menina solta as mãos da mãe, que fica ali entretida ao seu crochê, sentada em um belo lençol, e corre até o menino, que também está entretido com seu violão, e sentado em uma colcha de retalhos. Os olhinhos dele não se abrem para perceber a chegada dela, parece que está em outra dimensão, fazendo notas diminutas, com dedos pequenos para um violão grande, afinal, se o violão foi doado, também não podia escolher. Ela não tem escolha, então se assenta, ouve a música, e ouve também o grito da mãe: Mariana! Volte aqui!

- Espere um pouco mãe! A música está quase acabando.

A mãe ignora, continua no seu lugar, porém, agora, um olho no crochê, outra na Mariana. Mas parece que a música não termina, nunca.

A menina resolve conversar, ela pede que pare a música:

- Qual o teu nome? Essa música é muito grande. Por que você está sozinho? Por que os teus chinelos são de cores diferentes?

Ele olha, põe a mão na mochila que trouxe, pega uma garrafa com água, oferece um pouco, e depois, bebe em seu copo cujo desenho já está desbotado, e começa a responder.

- Meu nome é Beto, a música não é grande, mas eu já a cantei sete vezes, porque ela diz coisas bonitas, então eu tirei o ponto final dela. Eu não estou sozinho, você veio. Aprendi que alguém se aproximaria de mim, como você fez, mesmo que fosse por curiosidade, você ouviu a minha música. Quanto ao chinelo, é uma longa história, até hoje a mamãe não me contou, disse que ainda não estou pronto, mas ela me prometeu que quando eu for adulto, se ela não estiver mais por perto de mim, eu descobrirei a história por mim mesmo. Ela disse que demorou muito para descobrir a história de uma mochila escolar dela, que tinha um remendo de cor diferente, mas ela descobriu, e isto é uma esperança para que um dia eu também conheça a história dos chinelos.

A mãe de Mariana chega, pega-lhe pelos bracinhos: ‘Hora de ir, minha filha’.

- Mãe, esse é o Beto, ele disse que a mãe dele contou a história de uma mochila para ele, e começou a contar a história desses chinelos, e a dos chinelos vai demorar terminar. Você nunca me contou uma história. Você tem alguma? Compre para mim chinelos diferentes também, e uma colcha colorida como essa em que ele está sentado.