No esforço permanente de manutenção da sanidade, o cérebro usa o tempo para coar as dores. É por este mecanismo biológico de autodefesa que, depois de adultos, nos esquecemos o quanto a crueldade está impregnada no ambiente escolar. Fora um e outro trauma escondido nos recônditos da alma, restam saborosas lembranças de teor nostálgico. Tudo parece colorido nas memórias. A gente só volta a se defrontar com as maldades cinzentas das escolas quando os filhos atingem a idade escolar.

O mérito de Extraordinário, que estreia hoje nas salas de todo o País, reside justamente em mexer neste vespeiro emocional. A história de Auggie Pullman (Jacob Tremblay), o menino de 10 anos com deformação facial de nascença, cuja fisionomia choca mesmo após 27 cirurgias plásticas, soa como uma figura de linguagem. Não é preciso ter uma condição física tão dissonante para ser vítima da falta de gentileza. Cabe aos pais, a exemplo dos personagens Isabel Pullman (Julia Roberts) e Nate Pullman (Owen Wilson), promover um núcleo familiar acolhedor. Tanto para quem sofre, quanto para quem pratica as brutalidades em ambientes escolares.

O desafio colocado a estes pais, especificamente, é que agora, após uma década de vida, Auggie frequentará pela primeira vez uma escola regular, como qualquer outra criança. Lá, precisará lidar com a sensação constante de ser sempre observado e avaliado por todos à sua volta.

Atenção

Ponto didático do filme, que de uma certa perspectiva assume um caráter de autoajuda, é a distribuição de atenção aos filhos. Quando um, por razões diversas, absorve demais a energia dos pais, o outro fatalmente ficará desassistido. A carência restará, ainda que haja um verniz de aceitação pelo irmão preterido.
Aliás, aí está uma equação delicada, que desafia quem se aventura nesta missão de perpetuar a humanidade. Por vezes me vejo matutando sinceramente sobre as diferenças extraordinárias (ops!) de seres vindos do mesmo ventre, criados no mesmo ambiente. Fica claro que os filhos têm necessidades distintas, muitas inatas. Os pais precisam de repertório, pois a aplicação de fórmulas prontas é um jeito muito eficiente de proliferar a injustiça e, por consequência, a infelicidade.
Então Extraordinário é uma película melhor absorvida por quem já procriou? Certamente não. No escuro da sala de cinema, a obra nos lembra da complexidade deste intervalo entre o nascimento e morte, convencionalmente chamado de vida. E o afeto sempre será uma boa maneira de aliviar o fardo da existência.