Há 30 anos, no início de setembro de 1989, mais exatamente no dia 3, uma partida entre Brasil e Chile, pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 1990, na Itália, quase provocou uma crise diplomática entre os dois países. A reportagem do Estado teve acesso a documentos até então confidenciais que relatam ataques e ameaças a brasileiros que moravam em Santiago à época daquela partida histórica.Troca de correspondência entre a Embaixada do Brasil na capital chilena e o Ministério das Relações Exteriores revela momentos de tensão vividos por brasileiros. O estopim para o estremecimento da relação foi o caso mundialmente conhecido como "A fogueteira do Maracanã".Brasil e Chile dividiam a liderança do Grupo 3 das Eliminatórias. A seleção brasileira tinha saldo de gols melhor e somente a vitória interessava ao Chile. Com 1 a 0 no placar (gol de Careca), o goleiro chileno Rojas, então, simulou, aos 23 minutos do segundo tempo, ter sido atingido por um sinalizador. A farsa fazia parte de um plano para pedir o cancelamento da partida alegando falta de segurança. Rojas entrou em campo com uma lâmina de barbear escondida na luva e cortou o próprio rosto, fingindo ter sido atingido pelo sinalizador lançado por Rosenery Mello do Nascimento, que depois ficou conhecida como "A fogueteira do Maracanã".Após o rojão náutico atingir a área do Chile, Rojas caiu e levou as mãos ao rosto. O juiz permitiu a entrada do médico e do massagista do Chile, mas os jogadores recusaram a maca e carregaram o goleiro para os vestiários. Os representantes da Fifa que estavam no Maracanã comunicaram que os chilenos não voltariam a campo e o juiz encerrou a partida para frustração dos mais de 150 mil torcedores que lotaram o estádio.Em Santiago, de acordo com carta confidencial enviada ao Itamaraty, 4 mil chilenos foram para a porta da Embaixada do Brasil naquela noite. Quebraram 44 janelas do prédio e uma agência da companhia aérea Varig também foi apedrejada.No dia seguinte, funcionários da embaixada receberam vários trotes. Um deles dizia que uma bomba iria explodir no prédio em 30 minutos. O local chegou a ser esvaziado, mas nada foi encontrado.Já no dia 5 de setembro, a mulher de um adido aeronáutico brasileiro foi informada que uma de suas filhas havia sido sequestrada e que só seria liberada após a decisão da Fifa sobre quem se classificaria para a Copa. O fato foi comunicado imediatamente à polícia e ao Itamaraty, mas não houve sequestro. Tudo não passou de uma ameaça para amedrontar a família do servidor brasileiro. No mesmo dia, um militar foi perseguido por um outro motorista enquanto voltava para casa e recebeu insultos verbais e gestos agressivos."A população chilena, que tratava com muita consideração os brasileiros, após o jogo, mudou, parcialmente, de posição e, nota-se, nitidamente, um clima hostil", diz trecho da carta enviada ao Itamaraty.Nos corredores da Fifa, o clima era de acirramento. A Federação Chilena pediu que sua seleção fosse declarada vencedora da partida ou que o Maracanã foi interditado e outro jogo realizado em campo neutro. A CBF reagiu enviando à Fifa uma sequência de fotos exibidas pelo então presidente Ricardo Teixeira. Elas mostravam que o foguete de sinalização caíra a cerca de 1,5 metro distante de Rojas, com o goleiro de pé, recuando em direção à fumaça.Outra prova da CBF era o laudo pericial feito em Rojas quase três horas depois do incidente. O goleiro estava lúcido, com um ferimento na testa de 2,8 centímetros. O laudo apontava que o corte foi provocado por uma lâmina. Não havia qualquer sinal de chamuscamento ou de pólvora.O relatório do juiz favorecia o Brasil porque afirmava que a seleção chilena abandonara o campo sem autorização. O árbitro acrescentou ainda que o bandeirinha viu o foguete caindo um metro atrás de Rojas.Até que a Fifa tomasse uma decisão, uma batalha foi travada entre autoridades dos dois países. O comandante-chefe da Marinha do Chile, almirante José Toríbio Merino, classificou o Brasil de "país primitivo". O encarregado de negócios da embaixada chilena no Brasil, então, foi convocado para prestar esclarecimentos ao governo brasileiro. Gonzalo Salgado Tormo foi ao Itamaraty e assegurou o "total interesse do governo do Chile em manter excelentes relações diplomáticas com o Brasil". Já o chanceler chileno, Herman Felipe Errazuriz, telefonou ao Brasil para minimizar as declarações do comandante-chefe.A então encarregada de negócios da Embaixada do Brasil em Santiago, Heloísa Vilhena de Araújo, era a responsável por manter contato com as autoridades chilenas para tentar normalizar a situação. "Fiz simplesmente meu trabalho de notificar as autoridades do Ministério das Relações Exteriores do Chile das agressões e ameaças de que a Embaixada e alguns de seus funcionários foram alvos, solicitando providências, no que fui sempre prontamente atendida. O mal-estar contra o Brasil, na população chilena, perdurou até que a farsa do jogador foi comprovada", contou Heloísa ao Estado três décadas depois.A tensão só foi dissipada no dia 10 de setembro. Após reunião de quase seis horas, a Fifa confirmou a classificação do Brasil para o Mundial de 1990. Ao gol de Careca somou-se outro, determinando o placar de 2 a 0 à partida. A CBF, porém, foi multada em 20 mil francos suíços pelo rojão atirado por Rosenery.Com a farsa descoberta, Rojas acabou banido do futebol. Em 2001, após pedido de perdão, a punição foi retirada pela Fifa. Rojas ainda trabalhou no São Paulo como preparador de goleiros e chegou a treinar a equipe em 2003. O Estado procurou o chileno duas vezes na semana passada, mas o ex-goleiro não quis dar entrevista para comentar este episódio.Rosenery Mello, a Fogueteira do Maracanã, virou capa da revista Playboy dois meses e meio depois daquela partida. Em 2011, morreu no Rio, após sofrer um aneurisma cerebral.