Não bastasse a pandemia do coronavírus ter derrubado a demanda e, por consequência, a produção das empresas, agora a indústria sofre com uma alta de até 35% dos insumos utilizados no processo produtivo, além da escassez de alguns suprimentos.Por enquanto, as empresas estão absorvendo a maior parte desse impacto, reduzindo margens que já vinham pressionadas por causa da crise da Covid-19. Há, porém, o temor de que, em algum momento, com o crescimento da demanda, esse aumento de custos seja repassado ao consumidor, pressionando a inflação.Alta do dólar, queda da produção de insumos devido à pandemia, retomada da produção industrial mais rápida do que o esperado e aumento das exportações em decorrência do câmbio favorável e do reaquecimento da demanda em países onde a doença já arrefeceu estão entre os fatores que explicam esse desequilíbrio entre oferta e demanda na produção, segundo as indústrias afetadas.“Temos um grupo de empresas e compramos aço juntos. Identificamos que há uma falta de produto no mercado”, diz Homero Dornelles, consultor especialista no mercado de aço, que trabalha com 18 fabricantes de máquinas e equipamentos de grande e médio porte, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina.“Das cotações que fizemos em agosto, recebemos resposta para somente 31% dos pedidos. Mais empresas não responderam porque não tinham disponibilidade do material.”Segundo Dornelles, como resultado dessa falta de produto, os preços do aço nos distribuidores acumulam alta de até 35% de julho a setembro —e há um novo reajuste esperado para outubro. Para o consultor, a crise da Covid-19 desequilibrou o mercado.“Com a queda da demanda no início da pandemia, as usinas abafaram seis alto-fornos entre abril e maio, reduzindo a produção nacional em cerca de 40%”, afirma.Nesse meio-tempo, as usinas venderam seus estoques, consumidos por setores como construção civil e máquinas agrícolas, que retomaram atividades mais cedo.Além disso, diz Dornelles, a diminuição de embarques na China em fevereiro e março provocou desabastecimento em muitos mercados, e o Brasil aumentou exportações para atendê-los.O dólar alto também inviabilizou importações, contribuindo para a menor oferta de aço no mercado interno, nesse momento em que o restante da indústria retoma produção.“Isso vai ter efeito no cumprimento dos prazos de entrega das empresas, com potencial cobrança de multas e geração de inadimplência”, diz o consultor. “Trabalhar nesse campo de incerteza, quando os aços representam para máquinas e equipamentos de 35% a 60% da matéria-prima, somado à insegurança de preço, está levando a um desarranjo no mercado.”Para José Velloso, presidente da Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos), as indústrias vivem uma situação quase “kafkiana”. “O setor de máquinas está longe de estar utilizando toda a sua capacidade produtiva, o setor de aço também, mas os preços subiram, mesmo num país sem inflação.”O Instituto Aço Brasil, representante das usinas, diz que o setor tem plena capacidade de atender a demanda e que prioriza o atendimento ao mercado interno.“A retomada da atividade econômica vem sendo mais rápida do que o esperado, o que é bom para o país. No ápice da pandemia, o setor chegou a operar com ociosidade de mais de 50% de sua capacidade instalada. Tão logo os setores consumidores voltaram a apresentar seus pedidos, as usinas, prontamente, religaram seus alto-fornos e estão operando normalmente”, argumenta o instituto.Outro setor que enfrenta falta de insumos e aumento de preços são os transformadores de plásticos.“Há um problema de oferta de PVC, polipropileno e polietileno”, relata José Ricardo Roriz Coelho, presidente da Abiplast (Associação Brasileira da Indústria do Plástico).Segundo o representante da indústria, no segmento de PVC, os reajustes chegam a superar 30% nos últimos meses.A DVG Plásticos, fabricante de tubos, conexões, telhas e placas de PVC, por exemplo, informou em meados de agosto um reajuste de 10% em todos os seus produtos e limitação de compra por clientes. Segundo informou a empresa, em comunicado a clientes, a resina plástica teve aumento acima de 50% até agosto, e novo reajuste já é esperado para o mês de setembro.Já a Corr Plastik, também de tubos e conexões, anunciou reajuste de 20% nos seus preços e alertou para o risco de parada de produção. “Estamos enfrentando sérias dificuldades para conseguir nos manter em mínimas condições operacionais em nossas unidades, e os riscos de paradas por falta de insumo estão cada vez mais iminentes”, informou a empresa a clientes.Segundo a Braskem, maior fornecedora de resinas plásticas do país, o problema em PVC se deve a uma suboferta no mercado internacional e também ao apetite chinês com a retomada, num mercado que é atendido em um terço por importação.Já em polipropileno, a empresa diz que houve um retorno muito rápido da atividade industrial, com pedidos nos últimos meses maiores do que a média do ano passado, mas que está dando conta de atendê-los, embora a preços mais altos devido à cotação internacional.As dificuldades de suprimento afetam também indústrias que atendem o consumidor final.No setor de bicicletas, a Abraciclo (Associação Brasileira dos Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas, Bicicletas e Similares) alertou em meados de agosto para um gargalo da produção, em meio a aumento da demanda global, devido à falta de peças.“Há um grande descompasso entre a oferta de peças dos maiores fornecedores, que estão localizados principalmente na Ásia, e o aumento da procura por bicicletas no mundo inteiro”, diz Cyro Gazola, vice-presidente do Segmento de Bicicletas da Abraciclo.“Muitos fornecedores de componentes estão trabalhando com algo entre 120% e 130% da sua capacidade, mas, mesmo assim, não conseguem dar conta da demanda da indústria.”Em eletroeletrônicos, a falta de componentes vindos da China enfrentada em fevereiro não se repetiu nos meses seguintes. Mas o setor ainda convive com uma alta de 30% a 40% no preço dos insumos importados.“Tivemos dois problemas simultâneos, a desvalorização do real do ano passado para este, num setor com 70% de insumos importados, e a redução dos voos, que levou a uma alta de preços do frete de cerca de 200%”, diz Humberto Barbato, presidente da Abinee (Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica).No setor têxtil, com safra recorde de algodão, também não há falta de insumo. Mas os custos estão em alta, devido ao câmbio favorável à exportação da matéria-prima e às cotações internacionais pressionadas pela volta da atividade em regiões onde a pandemia já arrefeceu, afirma Fernando Pimentel, da Abit (Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção).“Nos últimos 20 dias, o algodão subiu 20% a 25%”, diz Pimentel. “No mercado interno, não há espaço para fazer repasse de preços, dado o mercado consumidor reagindo, mas ainda empobrecido.”Esse descolamento entre a alta de custos enfrentada pelos fabricantes e os preços aos consumidores fica evidente quando se observam dois dos principais índices de inflação do país.O IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), taxa oficial de inflação medida pelo IBGE e que mensura a variação de preços para famílias com renda de 1 a 40 salários mínimos, acumula alta de 2,31% em 12 meses até julho.Enquanto isso, o IGP-M (Índice Geral de Preços do Mercado), medido pela FGV e composto em 60% pelos preços do atacado, bateu 13,02% em 12 meses até agosto, sob impacto da alta global das commodities com a recuperação econômica e a desvalorização cambial.Para André Braz, coordenador de índices de preço do Ibre-FGV, o repasse de preços do atacado para os consumidores pode ganhar força em 2021, com a recuperação da atividade econômica.“À medida que o desemprego começar a diminuir, isso pode facilitar o repasse de preços”, diz Braz. “É inquestionável que há um represamento de custos”, afirma.Ele pondera, porém, que a situação fiscal do governo deve impedir uma alta maior da inflação no próximo ano, já que ela contribui para que demanda permaneça reprimida.