Em abordagens sobre o tema vegetarianismo é comum surgirem questionamentos do tipo: com tanta miséria, desigualdade, fome, guerra, criança doente, por que se preocupar em não comer animais? Não seria mais urgente cuidar primeiro das pessoas? É muito simples! Não há fato isolado do contexto. Não existe a espécie humana sobre a Terra isolada das demais espécies. Logo, as mazelas sofridas pelo ser humano refletem o modo como ele estrutura sua vida na Terra. Assim sendo, a sobreposição humana contra todas as outras espécies e também sobre a sua própria espécie vem causando prejuízos inestimáveis, de modo que vidas são dissipadas e populações vulneráveis fabricadas.

Os problemas globais apontados como graves ameaças à vida e à dignidade humana, tais como trabalho escravo, aumento incontrolável do efeito estufa, miséria, desigualdade social alarmante, fome, inflações, terremotos, deslizamentos, enchentes e demais desastres, são identificados em âmbito global, porém são gerados em âmbito local, no dia a dia de cada pessoa, isto é, provocam-se males globais por meio de hábitos diários, experimentados em cada localidade. São as maneiras de comer, beber, vestir, divertir, enquadradas por um sistema cuja base prioriza o consumo e o lucro a partir da exploração, que ocasionam dificuldades e comprometem a vida na Terra.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e até o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) afirmam que a pecuária é o setor da economia do qual foram resgatados o maior número de trabalhadores(a)s em condições análogas às da escravidão. Estima-se que tais resgates correspondam a 80% dos casos. E algo que chama a atenção, nesse contexto, é a presença numerosa de crianças e de adolescentes sob domínio escravocrata. As condições de vida do (a)s trabalhadore(a)s resgatado(a)s caracterizam desrespeito absoluto à dignidade humana, pois ele(a)s se encontravam em situação de severa exploração, sem água limpa para beber, nem delimitação de horas de trabalho, ou mesmo locais apropriados para descanso; além de não contarem com o mínimo de saneamento básico e de serem obrigados a assumir, de forma cruel, dívidas referentes à compra de seus próprios equipamentos de trabalho. Ou seja, vivem à margem da lei, até fugirem ou, por sorte, serem resgatados.

Tal situação está diretamente ligada, segundo o Ministério da Agricultura, ao fato de o Brasil liderar o ranking dos maiores exportadores de carne do mundo. Em tal cenário acendem as perspectivas de agravamento, pois há previsão de crescimento anual de 2,15% da exportação de carne bovina e de 3,64% de carne de aves. E o pior é que o lucro auferido por meio dessa exportação não é distribuído igualitariamente enquanto riqueza social, dado que ele fica nas “mãos” de pequenos grupos de grandes proprietários, sendo acumulado, como já foi dito, à custa da exploração da mão de obra escrava de adultos e crianças pobres. Isso sem contar os inúmeros impactos causados pela criação extensiva de gado à diversidade em todo planeta.

O relatório publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 2008, aduziu diversos prejuízos ocasionados pela criação de gado: mudanças climáticas, poluição do ar, poluição e esgotamento da água, degradação do solo e perda de biodiversidade. Por esse viés, a pecuária é apontada como responsável por cerca de 14% dos gases estufa do planeta. Dessas emissões, uma quantidade significativa vem do metano, que, em se tratando de contribuição para o aquecimento global, é 23 vezes mais poderoso do que o dióxido de carbono.

Quanto à pecuária intensiva, aquela que mantém os animais em confinamento, ela é a grande motivadora da monocultura de soja no Brasil, que ocupa o topo do ranking de produtores, chegando a colher 81,5 milhões de toneladas desse grão, isso em detrimento da diversificação do plantio dos demais alimentos. Trata-se de um importante fator no processo que desencadeia o desequilíbrio entre a oferta e a demanda por alimentos, de modo que há, inevitavelmente, nesse caso, o aumento do preço da cesta básica, e, por sua vez, do avanço da fome no Brasil. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o país faturou mais de 50 bilhões de reais com exportações de soja.

Nesse contexto, países da Europa, da Ásia, e principalmente a China, importam milhões de toneladas da soja produzida no Brasil para alimentar os animais que estão em confinamento por lá. Somam bilhões de animais apinhados em barracões pelo mundo. Do que se alimentam? Soja do Brasil. Contudo, os registros oficiais sobre o aumento do crescimento econômico do País não apresentam o cálculo do desmatamento da Floresta Amazônica, o qual atinge 75% das áreas desmatadas na Amazônia Legal devido à ocupação motivada por essa atividade produtiva. Também não contabilizam a contaminação da água e da terra por dejetos animais e agrotóxicos, e menos ainda registram e divulgam o animalicídio das espécies silvestres.

Portanto, a redução do consumo da carne ou até mesmo a adoção de dietas vegetarianas, bem como o cuidado especial em relação ao modo de consumir – comer, beber, vestir – são atitudes possíveis para combater o aquecimento global, a fome e a destruição da floresta e da biodiversidade. Ressalte-se que a produção de cereais demanda um consumo de recursos hídricos cinco vezes menor do que o necessário na prática da pecuária. Além do mais, a carne não é um alimento essencial à vida humana, embora a prática do consumo e o sistema capitalista imprimam esta ideia.


Luzia de Kassia Rocha de Souza é representante do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e da/o Adolescente - Cedeca Glória de Ivone, assistente social, especialista em Educação e Direitos Humanos e militante pela consolidação dos direitos humanos e direitos animais.

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