O processo de colonização portuguesa do Brasil, diverso do estilo espanhol nos demais países do continente, influenciou, e muito, na estranha sensação, para quem nasce em terras brasileiras, de não se sentir parte integrante de um todo maior chamado América Latina.

Geograficamente, somos todos latino-americanos, mas, culturalmente, não. Essa dissociação manifesta-se, primeiramente, na língua: português no Brasil; espanhol no resto do continente. Ademais, existem outras diferenciações que nos distanciam do ser latino-americano. Vejamos algumas delas.

Quem caminha pelo centro de Buenos Aires, pela calle (rua) Florida e pelo bairro boêmio La Boca ‒ referências da capital da Argentina; ou pelo passeio Almada, em Santiago, capital do Chile; ou pelo bairro da Providência, em Lima, capital do Peru, sente-se latino-americano não só pelo falar, mas, sobretudo, pela mesma maneira de se vestir ou se portar com o outro.

No campo da pesquisa econômica, essa dicotomia manifesta-se de forma ainda mais evidente. E não foi por acaso que se instalou, em Santiago, a mais influente agência da Organização das Nações Unidas, eminentemente voltada para estudar a problemática do desenvolvimento latino-americano. Refiro-me à

Comissão para o Desenvolvimento da América Latina ‒ a CEPAL.
Nesta se juntaram inúmeros estudiosos dos mais diferentes países do continente com o objetivo de propor políticas públicas para o desenvolvimento da região. Na CEPAL, conviviam, no mesmo espaço, o economista Raúl Prebish, os brasileiros Celso Furtado, economista, e Fernando Henrique Cardoso, sociólogo; o chileno Enzo Faleto e outros importantes pensadores. A convivência num mesmo ambiente foi salutar para que brasileiros e outros pesquisadores da região ampliassem suas visões em torno do todo que é a América Latina.

A literatura talvez seja onde se sinta com mais intensidade essa dicotomia de ser ou não latino-americano. Quem leu os escritos do colombiano Gabriel Garcia Márquez, em “Cem Anos de Solidão”, ou o peruano Mário Vargas Llosa, na sua “Conversa na Catedral”, ou até mesmo o mexicano Carlos Fuentes, em sua “Legião, mas transparente”, insere-se no denominador comum de pertencer à América Latina.

A música é outro campo que separa a identidade brasileira daquela latino-americana. Pessoalmente, sinto-me brasileiro ouvindo Bossa Nova e Samba, mas não me sinto latino-americano com o sentimentalismo da paraguaia “Recuerdos de Ypacaraí”, ou a mexicana “Contigo Aprendi”, ou com o tango “El día que me quieras”, do argentino Carlos Gardel ou ainda as canções do vallenato colombiano

O saudoso cantor Zé Rodrix expressou, na sua canção “Soy latino-americano e nunca me engano”, o ser ou não ser da região. Belchior foi outro a proclamar em sua canções “o sou apenas um rapaz latino americano.” Caetano Veloso  em “soy louco por ti América” declarou seu louvor ao ser latino-americano. O fato é que nos enganamos quando nos sentimos brasileiros vivendo praticamente no mesmo nível de desenvolvimento e inseridos na mesma geografia de povos de -origem hispânica, como também se engana o resto da América Latina ao desconhecer o que é ser brasileiro!

Salatiel Soares Correia
é engenheiro, bacharel em administração de empresas, mestre em Planejamento Energético. É autor, entre outras obras, de Cheiro de Biblioteca.