Meados de junho sempre são tristes para mim. Sem saber o porquê, tal período todo ano chega sempre acinzentado, muxoxo, retraído, dentro da frigidez tão comum da estação.

Sou absurdamente desligado à precisão de datas, propenso até mesmo a esquecer a data do meu aniversário. Sim. Teve um ano que soube por outra pessoa, no finalzinho do dia, que aquele se tratava de minha data natalícia. Tem sempre um que aparece para lembrar a gente. Datas são meros borrões imprecisos no meu calendário.

Neste ano, ao acordar cedo, tudo em volta me parecendo pálido, provocou-me uma gastura triste demais. Vai daqui e dali, preparando para trabalhar, compulso o celular e, num grupo da família, soube ser a data exata em que papai morreu. Fazia trinta e nove anos. Liguei os pontos, entendendo a exata razão da tristeza junina a que sou anualmente acometido. Inevitável foi, portanto, não me lembrar do dia do seu velório, destelhando assim outras reminiscências.

De tais recordações, não tantas quanto queria ter, mas o suficiente para manter a sua memória acesa comigo, algumas se destacam. De papai me levar consigo ao bar do seu Jonas para tomar suas doses e, a parte que ainda faz salivar até hoje, me pagar maria-mole. Comia duas ou três facilmente. Outra foi quando fui com ele para a roça de arroz que tocava arrendada. A pé, ao passar por um pomar, colheu uma laranja e, após descascar, me deu a tampa graúda, na verdade quase a metade do fruto. Ainda, não me esqueço do seu cheiro de suor misturado com cigarro de palha e mato cortado, quando chegava do batente. Uma outra lembrança interessante era quando íamos à casa do seu irmão, o tio Adélio, e, na chegada, correndo a mão nas galhas de pés de café, pegava alguns madurinhos, jogava na boca e chupava os grãos. Um dia me ofereceu dizendo que não poderia engolir o caroço, eu aceitei, mas acabei imediatamente cuspindo fora. Na verdade, não gostei nada do sabor. São algumas das poucas lembranças que ainda residem e resistem comigo.

De todas as lembranças alcançadas, uma, a da noite em que partiu, se destaca. Não pela tristeza causada, porque não me lembro de sentir algo assim. Dada a minha pouca idade, não sabia ao certo o que significava morte. Inclusive, lembro-me de ter ficado, durante o velório, em frente à casa, brincando de empilhar tijolos e rabiscando o chão com um graveto, enquanto as pessoas chegavam e saiam. Passando por mim, uma ou outra parava, me olhava piedosamente e lamentava: "tão pequeno e já sem pai."

Na noite anterior, um corre-corre, papai internado, "está no balão", diziam repetidamente. Mamãe, nisso, ia e voltava do hospital. Aquela agonia. Vizinhos e parentes perguntando como estava ele, outros respondiam “no balão, está ainda no balão”. Claro, são flashes tímidos, como que faiscados na lembrança, porque então eu tinha quatro anos de idade.

Logo, para mim, ante a repetição da afirmação, assim que mais tarde chegou a notícia do falecimento, não consegui imaginar nada além do papai indo embora naquela noite dentro do cesto e elevado por um balão, balão colorido, balão grande, velejando pelo céu, acenando um tchau, até sumir pela imensidão escura, mas enluarada.

Anos mais tarde, mas ainda criança, seguia imaginando, papai deve ter pousado decerto em algum lugar onde só é de manhã. Porque a maioria das lembranças dele se passa pela manhã. A maioria. Dentre as exceções tem a do dia em que partiu, era de noite, noite clara, porém era noite, e foi-se embora de balão. E é esta lembrança que me forço a guardar até hoje, porque se não é a verdade a olhos duros e realistas, naquele tempo foi, mantive e tentarei manter assim. Ele foi de balão.

Ito Pedragrande
nome artístico de Hailton Correa Lima, é policial penal e escritor. Autor de Aluir a Palha, Ruir a Pilha – Contos, Senda Incomum – Poemas, A Rosa Anilada e Outros Contos, lança no mês de junho a novela O Revés da Vingança